quinta-feira, 15 de setembro de 2011

A Voz de Enid: 'Além da Estrada'

E foi assim que o cinema se tornou globalizado. De repente, não sabemos mais definir de que país exatamente é um filme. Lembro do Festival de Cannes de 2002, quando 'O Pianista' sagrou-se vencedor. O filme de Roman Polanski tinha qualidades e merecia ser premiado, mas eu lembro que nos meus 22 anos a pergunta que ficou na cabeça era: que nação venceu Cannes? Essa dúvida se fazia presente porque eu cresci observando os grandes festivais e comparando-os a disputa entre as escolas de samba do carnaval carioca. No ano tal a vencedora tinha sido a Beija-Flor, no seguinte a Mangueira, e por aí vai. Na minha visão, os países eram as agremiações, e o enredos em si simbolizavam os próprios filmes. A vitória da produção que abordava o sorevivente do holocausto, nessa metáfora carnavalesca, simbolizava um desfile único onde o Salgueiro, a Portela, a Mocidade, a Unidos da Tijuca e a Grande Rio tivessem feito em conjunto um enredo.

As co-produções, cada vez mais presente por inúmeros motivos, hoje são a tônica e a possibilidade de muitos roteiros sairem do papel. Junto a essa nova realidade, países mais necessitados desses acordos acabam levando a pior no cabo de guerra sobre a decisão de qual nacionalidade são determinados filmes, e aí vemos produções cada vez mais híbridas nascerem de propostas e necessidades distintas. No fim das contas, com o preto no branco, é fácil falar que um filme como 'Biutiful' é uma co-produção entre o México e Espanha; mas com que cara o estado mexicano indica a produção como sua opção para tentar uma vaga entre os melhores filmes estrangeiros na premiação do Oscar (e acabar conseguindo tal indicação), tendo em vista que o filme é rodado na Espanha, com atores espanhois, realidade espanhola, enfim, com quase nenhum laço que o una ao México? No momento dessas definições de premiação é que percebemos como cada vez é mais difícil correlacionar filmes e países. A qualidade das produções, no entanto, nada tem a ver com nacionalidade, como é o caso de 'Além da Estrada'.

Ano passado, o filme concorria na seleção da Premiére Brasil do Festival do Rio, de onde saiu com o prêmio de direção para o estreante Charly Braun. Lá fui eu então assistir ao filme, como costumo fazer aos concorrentes da mostra, nem que seja para opinar sobre a decisão final e o rumo dos Redentores entregues. Qual não é o meu susto ao ver entre a competição, em meio a histórias de um estelionatário paulista, um artista esquizofrênico sergipano, uma história de amor entre homossexuais cariocas, um drama depressivo também gay e também ambientado no Rio de Janeiro, o despertar da paixão entre um argentino e uma belga, num caminho tortuoso até Punta Del Este. O que esse filme tem de nacional, para ambicionar uma competição entre longas nacionais? Em tese, apenas o dinheiro; língua, atores, espaço cênico, ambientação, realidade, nada é nacional. Sobram a grana, o diretor e alguns técnicos. Isso diminui o filme? Não. Apenas, ao meu ver, quantidade de dinheiro nenhum influencia a sua nacionalidade. Tanto quanto 'O Jardineiro Fiel', 'Água Negra', 'Um Homem Bom', 'Diários de Motocicleta', 'Ensaio sobre a Cegueira' e provavelmente também 'Corações Sujos', 'Além da Estrada' é tudo, menos 'cinema nacional'.

Dito isso, passamos ao concreto: a estreia de Braun´nos longas é muito promissora. Sem um roteiro de grande porte, o 'road-movie' de ritmo lento mas nunca enfadonho nos transporta para a viagem de Santiago, um rapaz que volta a cidade natal para cuidar do testamento dos pais. Durante uma viagem até uma fazenda, conhece Juliette e se encanta por ela. Assim nasce mais um romance no cinema, de tintas bem delicadas e que se desenrola no seu próprio tempo. Ele, em busca de nomear o próprio passado para dar um rumo ao presente; ela, em busca da paz de espírito que só um grupo neo-hippie acredita capaz de trazer. Juntos, eles irão bem devagarzinho olhar um para o outro e encarar uma nova realidade diferente do que imaginavam.

O filme é bem fotografado e interpretado de forma naturalista pelos estreantes (no elenco, uma ponta de Guilhermina Guinle, meia-irmã do diretor e uma das produtoras), que injetam doces verdades a um filme singelo e bem intencionado, que até escorrega aqui e ali por conta de um roteiro por vezes vago, mas que cumpre com louvor as expectativas de abrir as portas do cinema para esse novo nome. Se não chega ao ponto que poderia caso parasse em mãos experientes, pelo menos faz o necessário para que torçamos pela próxima investida de Braun atrás das câmeras.


NOTA: 8,0.

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